Eu Já Estive Em “Rotas de Fuga”, de Cleone Ribeiro

Minha primeira leitura de um livro de Narrativa em primeira pessoa alternada ou ponto de vista alternado que permite que diferentes personagens compartilhem suas perspectivas ao longo da história.
Vou confessar que no começo tudo estava meio confuso, mas a poesia na escrita de Cleone Ribeiro me levou até o fim de Rotas de Fuga, romance que traz uma narrativa fragmentada e pequenas histórias entrelaçadas, onde a protagonista, Helena, permanece em crise de identidade, está a todo o tempo aprendendo a lidar com a morte e com seus sonhos, que ora se confundem com os cenários de toda a história.
O livro não prioriza uma ordem temporal, o título atribuído ao romance vai se insinuando aos poucos no enredo, quando ao seu término, para mim, se justifica. A narrativa segue toda a vida de Helena, quando era criança, quando morava com os pais, quando se casou, teve filhos, parte do crescimento dos filhos, parte dos problemas que teve com alguns dos filhos, a morte do marido, o que veio a seguir da morte do marido, e sempre a vontade de ter um livro publicado e a angústia dele não sair do papel.
Acredito que escritores que sofram com a dificuldade de escrever um livro, aquelas horas em frente ao computador sem nada sair, possam se identificar com a leitura, porque aqui Helena levou uma vida para escrever esse, só espero que nem todos levem uma vida para escrever também. Sobre isso ainda, há momentos angustiante por demais, pelo menos para mim, sobre essa falta de determinação da protagonista de tirar esse livro do papel.
Uma das partes que gostei bastante foi a do tratamento de Laura, uma das filhas de Helena, talvez por ser um momento de contato de Helena com alguém, e por esperar um desfecho feliz entre elas e a curiosidade de querer saber o porquê de Laura necessitar tanto por mudanças.
Helena é melancólica, espera pela Visita – como ela chama a morte – durante toda a vida, já que se depara com essa Visita muito jovem. Ela recebe a Visita algumas vezes durante sua trajetória. Tudo bem, algo normal para todos nós que estamos aqui vivos e somos práticos e seguimos a vida, mas é justamente toda essa melancolia e poesia de viver que, a meu ver, a autora traz para as páginas do livro, mesclando com muitos sonhos. Helena sonha bastante e algumas vezes já não sabemos se estamos vivendo um sonho ou uma realidade. Algo que fiquei com um pouco de inveja, já que mal consigo lembrar do que sonhei quando acordo, aqui é retratado com riqueza de detalhes a ponto de confundir quem está lendo.
Helena gosta de café quente, chegando a queimar o céu de sua boca, às vezes. Também cita muitas vezes Gabriel Garcia Marques (não sei se quem é fã do autor, se Helena ou a autora, já que estamos falando de uma narrativa em primeira pessoa alternada). Muito bem escrito, um grande conto intercalado por poesias, um livro para quem gosta de textos longos, parágrafos longos, sem divisões, sem capítulos, para entrar na leitura e seguir sem fim.
Aqui, alguns trechos para sentir a dimensão da escrita da autora:
“Há muitas maneiras de querer, não apenas o desejo pelas coisas materiais. Há os que preferem, a essas, reter lembranças, retratos na memória, emoções na saudade. Há disputas ancoradas tanto no amor, como no desamor.”
“…me lembro daquela criança que apesar de ainda não ter aprendido a falar, se faz entender, enquanto eu, que conheço o vocabulário, sou muito menos sábia do que ela aceitando, passivamente, que não me compreendam aqueles para quem penso ser um livro aberto, sentindo-me sempre em débito para comigo mesma.”
“Era quando eu me perguntava, embora prescindisse de resposta, se a gente podia mesmo ter saudade de um futuro”
“Meu lado de dentro sempre me atraiu mais do que meu lado de fora. E digo isso com toda a minha sinceridade, mas também com todo o meu acanhamento, como seu ao dizer essas palavras me expusesse por inteira.”
Sinopse: Rotas de Fuga é um romance em que a diversidade de vozes narrativas, acrescida de uma linguagem na qual domina uma atmosfera de incertezas e de ambiguidades, justificam o estilo da narração. Tem como protagonista Helena, quem, na pretensão de escrever um romance, sentindo-se traída pela memória, busca auxílio em um narrador que a socorre quando do preenchimento dos seus vazios. Na condição de narradora depara-se com bloqueios que vão se insinuando no enredo e que por vezes a levam a interromper o discurso. Como compensação à precariedade da sua memória recorre aos sonhos (?) ― os maiores responsáveis pela citada ambiguidade ― por lhe provocarem o despertar de uma memória ficcionada, desvinculada, na maior parte das vezes, da temporalidade. É quando o imaginário fica responsável pelo estado de encantamento em que costumeiramente se refugia. A presença de elementos autobiográficos desperta, em Helena, a memória íntima de um tempo; e é quando realidade e fantasia se confundem, cedendo lugar à imaginação ― o que ocorre já no início da narrativa. Uma história que não se fecha onde a protagonista, na pretensão de realizar o sonho há muito acalentado ― o de escrever um romance ―, é surpreendida por situações que a despertam para o autoconhecimento. Perseguir um sonho, a partir daí, vai sendo suplantado pela necessidade de antes se conhecer ― necessidade que não consegue satisfazer. Daí a história não se fechar, transferindo ao leitor parte da responsabilidade por também preencher os vazios com os quais venha a se deparar com a leitura do romance. Um leitor participativo e crítico, portanto, é para quem a narrativa se volta. Um leitor suficientemente esclarecido e capaz de fazer uso da imaginação a fim de dar fechamento ao enredo. E aí está, em parte, a originalidade do livro, bem como sua contemporaneidade. Em síntese, o sonho de escrever um romance talvez não passe de uma camuflagem a ocultar, de Helena, o real motivo que a levou a narrar sua história: o da busca pelo seu papel cósmico, da sua inserção no mundo. No desenrolar da narrativa a protagonista deixa entrever o quanto é difícil escrever um romance.
Cleone Antonia Christina Leite de Abreu Ribeiro (Mirassol – SP, 1937) é professora livre-docente da Universidade Estadual Paulista Julio de Mesquita Filho (UNESP), Campus de São José do Rio Preto – SP. É bacharel e licenciada em Filosofia pela Universidade de São Paulo (USP). Doutora em Sociologia pela Universidade Estadual Paulista Julio de Mesquita Filho e livre-docente em Teoria da Literatura pela mesma universidade. Foi aprovada em dois concursos públicos em Sociologia. Tem duas teses inéditas: “Modernismo e Anomia” e “Realismo Humanista – uma Tendencia da Literatura Brasileira Contemporânea”. Reside em São José do Rio Preto – SP. É viúva de Geraldo Ribeiro, auditor fiscal do Governo Federal e tem quatro filhos. Gosta de ler, escrever e desenhar. Realizou curso de design de jóias em São Paulo- SP. Tem contos e poesias publicados em antologias e recebeu prêmios nas áreas de design de joias, pinturas e poesias.
Rotas de Fugas, de Cleone Ribeiro, tem 313 páginas e está à venda nas plataformas de e-commerce no formato impresso e digital.
Janaína Leme
@eujaestiveem